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Ilegalidade do tratamento de dados pessoais de candidatos a vagas de trabalho em face do princípio da não discriminação

20.junho.2022

Artigo de Luana Marques de Albuquerque, advogada de Mauro Menezes & Advogados

A Lei nº 13.709/2018 – Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) – ainda traz muitas dúvidas e inseguranças de procedibilidade, dado o impacto jurídico que impinge, potencialmente, em todas as relações sociais e jurídicas, seja no âmbito público ou privado.

Desde a promulgação da EC nº 115/2022, a garantia de proteção de dados pessoais foi alçada, formalmente, à categoria de direitos fundamentais pela inserção do inciso LXXIX ao art. 5º da Constituição da República:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…) LXXIX – é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 115, de 2022)”.

Se antes da publicação da referida emenda havia alguma imprecisão sobre o alcance da garantia de autodeterminação informativa, o reconhecimento da proteção de dados pessoais como direito fundamental revelou uma necessidade urgente de adequação aos termos da LGPD em todos os âmbitos jurídicos e em relação a todos aqueles que são descritos em seu art. 1º como agentes de tratamento.

Mesmo antes da consignação expressa desse direito na Constituição, os Tribunais Superiores já demonstravam clara tendência de universalização e instrumentalização do regramento nas mais diversas relações jurídicas, sendo esse direito reconhecido como autônomo e correlacionado a outros direitos fundamentais, em especial, da dignidade da pessoa humana, da privacidade e da não discriminação.

Nesse contexto, em fevereiro de 2022, foi publicado acórdão da Subseção Especializada em Dissídios Individuais 1 – SID-1 do Tribunal Superior do Trabalho no Processo nº TST-E-RR-933-49.2012.5.10.0001, que evidenciou uma clara mudança de diretrizes a respeito da privacidade dos candidatos a vagas de trabalho, motivada pela LGPD.

A controvérsia instaurada pelo Ministério Público do Trabalho da 10ª Região por meio de ação civil pública tem como escopo reconhecer a ilegalidade da formação de banco de dados de candidatos a trabalho que inclui informações sobre restrições de crédito dos concorrentes a serem posteriormente fornecidas por empresa especializada de gerenciamento de riscos e acessadas pelas empresas cujas vagas foram disponibilizadas. No caso em destaque, a empresa ré tem por atividade a “pesquisa e organização de dados de acesso público, a fim de subsidiar relatórios de gerenciamento de riscos para outras empresas”.

No julgamento do recurso de embargos, o Colegiado, por maioria, reformou o acórdão regional objurgado para determinar a abstenção da Ré na coleta, utilização ou fornecimento de informações sobre restrições creditícias relativas a candidatos de trabalho para formação de banco de dados. A Empresa ainda foi condenada ao pagamento de dano moral coletivo em face da conduta ilícita e discriminatória perpetrada.

Os votos do relator, Ministro Alberto Bresciani, e do vistor, Ministro Cláudio Mascarenhas Brandão, são robustos na fundamentação, de modo que não convém a este artigo a descrição pormenorizada de cada um dos argumentos lançados. Para o que ora importa, contudo, destaca-se a modificação ostensiva do entendimento jurisprudencial até então dominante sobre o tema, que implicou no reconhecimento da ilicitude da conduta da empresa ré. Neste ponto, indispensável a leitura de excerto do voto do Ministro Brandão:

“Como salientado, a compreensão extraída pela Turma, em voto condutor por mim proferido, partiu do pressuposto de a atividade envolver a coleta de dados públicos, não existir vedação legal para a sua utilização e não haver comprovação de efetiva discriminação sofrida pelos empregados.

Essa conclusão, porém, sofreu significativa mudança a partir da recente edição da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018, com a redação dada pela Lei nº 13.853/2019), que estabeleceu novos parâmetros normativos para o tema, a impor revisão do tema alusivo ao tratamento de dados pessoais. Se até então não encontrava vedação legal, essa prática se tornou lícita somente se encontrar abrigo na referida lei.”

Como observado, o posicionamento anterior era pela licitude da conduta face à ausência de vedação legal, associada à não comprovação de discriminação efetiva na contratação dos trabalhadores.

A LGPD, contudo, costurou a proteção dos dados como direito de todos os sujeitos de direito e obrigação de todos os agentes de tratamento, descritos em seu art. 1º E mais, estabeleceu essa garantia como regra sólida, não como mera diretriz, de modo que o tratamento dos dados pessoais deve seguir estritamente os princípios elencados em seu art. 6º dentre os quais finalidade, adequação, segurança, transparência e não discriminação.

Em outras palavras, a proteção de dados pessoais, com restrições legais a seu tratamento por qualquer agente, passou a ser a regra, para a qual podem ser legalmente previstas exceções, de modo que o silêncio sobre a conduta específica não mais pode ensejar entendimento pela ausência de vedação nas relações particulares, mas sim seu enquadramento na regra geral.

Nesse contexto, os votos do relator e do vistor chamam atenção pelo destaque aos princípios da finalidade e da não discriminação (art. 6º, I e IX, da LGPD), que se consolidam como pilares da solução adotada. Isso porque o princípio da finalidade, descrito no inciso I do art. 6º, veda o tratamento dos dados pessoais com objetivo diverso daquele para o qual foi coletado e sobre o qual tem ciência o titular. Trata-se de preservar a boa-fé do conhecimento do titular sobre os fins para os quais seus dados pessoais estão sendo utilizados e de limitar seu uso irrestrito e indiscriminado sob manto do consentimento inicial.

No caso em discussão, os dados pessoais relativos a eventuais restrições de crédito dos titulares, ainda que públicos, têm como escopo informar e subsidiar eventuais credores sobre o relacionamento do titular com suas obrigações financeiras, o que se justifica para concessão de crédito, vendas e demais contratações para operações financeiras. Por outro lado, em eventual vaga de emprego/trabalho, o exame de informações de crédito dos trabalhadores, salvo disposição legal em contrário, não se justifica para o cumprimento da atividade, tampouco para aferição de adequação ou confiabilidade na relação de trabalho e se revela, presumida e potencialmente, discriminatória.

Neste particular, destaca-se o segundo esteio do acórdão à luz da LGPD: a observância ao princípio da não discriminação. O acesso a dados creditícios de candidatos a vagas de trabalho/emprego, de forma geral e no caso em análise (motoristas profissionais), não tem o condão de acrescer ou reduzir sua capacidade de realizar as atividades do cargo disponível de forma objetiva ou presumida. Sendo assim, inexistindo propósito legítimo e intrínseco às atividades que possa ser diretamente conectado aos dados pessoais creditícios dos candidatos, sua consulta para fins de contratação se mostra potencialmente discriminatória.

Entendeu-se, portanto, que a coleta de dados nos termos propugnados configuraria ato atentatório aos direitos de personalidade, em especial a intimidade e a privacidade, por meio do uso desvirtuado de dados pessoais em desrespeito à autodeterminação informativa dos titulares/candidatos com finalidades discriminatórias.

Essa interpretação, além de inovadora na jurisprudência trabalhista, conforme reconhecido pelo próprio Ministro Vistor, revela uma mudança de paradigma a respeito dos limites dos contratantes nas relações trabalhistas no tratamento de dados dos candidatos, impondo-se a vinculação do acesso aos dados pessoais essenciais e indispensáveis ao processo de contratação e à atividade a ser desempenhada.

O julgamento em destaque traz importantes reflexões sobre os caminhos que vêm sendo traçados pela LGPD como norma balizadora das situações jurídicas na Era da Informação, em especial no que tange à sua aplicabilidade nas relações privadas quanto aos dados pessoais, antes reguladas, a rigor, pelo tratamento livre e amplo, salvo disposição expressa em contrário.

A regra agora é delimitadora e regida por princípios claros de autodeterminação informativa, cujo afastamento só se justifica por exceções legais amparadas também em direitos fundamentais.

A decisão da SDI-1 do Tribunal Superior do Trabalho informa a procedibilidade das normas de tratamento de dados pela LGPD e sua relevância na atualidade. Trata-se da demonstração não só da adequação às mais diversas relações jurídicas, mas da finalidade social da proteção de dados como direito fundamental, intimamente associado ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Ainda há muito a percorrer na jurisprudência dos tribunais para garantir a efetivação do direito à autodeterminação informativa, mas já se pode identificar uma compreensão ampla e necessária da importância da LGPD como fator de orientação da sociedade que se alimenta, essencialmente, do acesso massivo a dados pessoais. Por certo, a tese assentada no Processo nº TST-E-RR-933-49.2012.5.10.0001 é exemplo claro da perspectiva trazida pela interpretação dos dados pessoais como elementos íntimos ligados à personalidade dos indivíduos e caros ao Estado, que deve atuar como arrimo de proteção.

Artigo publicado originalmente no portal Capital News.

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