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Desproteção social do trabalhador autônomo no modelo “líquido” do PLC 12/24

15.março.2024

O PLC 12/24, ao proclamar autonomia dos motoristas de aplicativos, envolve risco de dissolução de direitos fundamentais.

Artigo de Monya Ribeiro Tavares

O Projeto de Lei Complementar – PLC, que pretende regular o trabalho dos motoristas de aplicativos (PLC 12/24), anunciado pelo governo Lula em 4/2/24, claramente absorve os dogmas do mercado e da ideologia neoliberal sob a falsa premissa de que o trabalhador seria livre para eleger as suas escolhas e sustentar a ilusão de ser “empresário de si mesmo”. Trata-se de uma proposta legislativa que tem como promessa uma regulação que preza a autonomia dos trabalhadores com garantia de direitos. Tal premissa tenta em essência abarcar o desejo externado por milhares de trabalhadores em continuarem “livres” para escolher de forma autônoma as suas condições de trabalho. Adotar essa perspectiva de subjetividade encarnada pelos trabalhadores vinculados a esse novo modelo de exploração de mão de obra corresponde a assumir as consequências de um discurso que não é neutral e que tem como essência a manutenção de interesses e dogmas da classe dominante, que visam a proteger uma estrutura de mercado depreciativa da classe trabalhadora e corrosiva dos seus direitos trabalhistas conquistados por meio de muita luta.

O sistema capitalista e os dogmas neoliberais encontram nos novos modelos de exploração de mão de obra um terreno fértil para fortalecer a individualidade e a liberdade como premissas necessárias que devem ser concedidas e protegidas aos indivíduos-consumidores de um sistema de mercado vigente em todos os aspectos da vida e de forma ainda mais marcante nas suas relações de trabalho. A imposição de uma nova ética de trabalho passa a ser moldada sob a premissa de uma suposta liberdade de escolha que se encontra intimamente vinculada às máximas que sustentam a essência de um mercado de consumo. Sob essa perspectiva, desvendada de maneira lapidar na obra do filósofo Zigmunt Bauman, os indivíduos são cada vez mais instruídos a agirem como consumidores e para tanto se faz necessário impor um estado de liberdade e de possibilidades de eleições permanentes, tanto na sua vida privada como nas suas relações de trabalho1.  

As desregulações dos direitos trabalhistas por meio de reformas legislativas e também por decisões de jurisdição constitucional estão sendo utilizadas para justificar a necessidade de manutenção de um sistema capitalista que se mostra cada vez mais desumano em relação as desigualdades sociais, adotando muitas vezes o discurso de que não há outra solução para aplacar a crise econômica e social em que vivemos. O que o PLC 12/24 traz como uma espécie de “novidade”, traduzida em uma “nova forma de trabalho” (palavras usadas pelo Presidente Lula durante o anúncio da nova proposta de regulação) é que agora a desregulação vem por meio de um pretenso pleito dos próprios trabalhadores, levado à mesa de negociação tripartite, pois abraça os fundamentos dessa nova subjetividade que traz como referência a individualidade e a liberdade que, de acordo com essa perspectiva, somente podem ser conquistadas pela desarticulação da classe trabalhadora e pela desregulação dos direitos antes assegurados.

Trata-se de uma mudança de perspectiva que impõe uma nova forma de pensar e de atuar sobre a vida no plano pessoal e profissional e que atinge de maneira abrupta a forma como o trabalhador passa a se enxergar e está intimamente vinculada ao que Bauman chama de “vida líquida”2. Segundo o autor, a razão de ser dessa nova subjetividade nada mais é senão a busca por esperança e por oportunidades que os trabalhadores precisam ter de participar desse novo jogo imposto por um modelo instável de sociedade. Sucede ao indivíduo, de acordo com Bauman, uma séria dificuldade em enxergar a possibilidade de participar do jogo social na figura “tradicional” do trabalhador, na forma como a conhecemos. Entre nós, essa identidade operária em crise pressupõe direitos garantidos pela legislação trabalhista e assegurados por uma instância judicial especializada. Na outra vertente, evocada no ambiente em que eclodem novas formas de exploração laboral medidas pela tecnologia, os indivíduos tendem a rejeitar sua subjetividade ligada à condição obreira, buscando novas formas de viver e de se relacionar com o trabalho, que preze em essência a satisfação de uma esfera de individualidade e uma suposta liberdade de escolha.3

A prevalência dessa  pulsão orientada ao âmbito de um indivíduo que renega sua condição de trabalhador subordinado, aspirando galgar realização por meio de uma ilusão de empreendedorismo – em que pese subsistir as mesmas chaves de exploração que acometem o empregado tradicional, tal vez ainda mais agudas – resulta na consumação de um modelo de perigosa desproteção social. Nesse sentido, convém analisar as promessas engendradas no PLC 12/24 como uma iniciativa de regulação raquítica e insuficiente, que retira dos seus destinatários a tutela de direitos e garantias previstos no art. 7º da Constituição e na CLT, sob uma premissa falsa de liberdade de escolhas em relação de trabalho, ignorando que entre as partes envolvidas não existe paridades de armas.


1 “el papel – em otros tempos a cargo del trabajo – de vincular las motivaciones individuales, la integración social y la reproducción de todo el sistema productivo corresponde en la actualidad a la iniciativa del consumidor” BAUMAN, Zygmunt. “Work, Consumerism and the new poor”. Buckingham: Open University Press, 1998. (trad. De Victoria de los Ángeles Boschiroli, BAUMAN, Zygmunt. Trabajo, Consumismo y nuevos pobres. Barcelona: Gedisa, 2017, p. 48).

2 Tal conceito presume a dinâmica fluida de uma sociedade na qual o modo de viver se baseia em uma espécie de destruição criativa que indiretamente agride ou elimina os seres humanos que o praticam. BAUMAN, Zygmunt. “Liquid Life”, Cambridge: Polity Press, 2005 (trad. Albino Santos Mosquera, 2006. BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Barcelona: Ed. Planeta, 2006, p. 11-12).

3 “Aunque el derecho y el deber del libre albedrío son premisas tácitas y/o reconocidas de la individualidad, no bastan para garantizar que el derecho de la libertad de elección pueda ser utilizado y que, por tanto, la práctica de la individualidad se corresponda con el modelo que el deber del libre albedrío exige. En la realidad, la mayoría de la población no tiene la posibilidad de elección en pese muchas veces son llevados a pensar que sí”. BAUMAN, Zygmunt. “Liquid Life”, Cambridge: Polity Press, 2005 (trad. Albino Santos Mosquera, 2006. BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Barcelona: Ed. Planeta, 2006, p. 34).

Artigo publicado no Portal Migalhas: https://www.migalhas.com.br/depeso/403457/desprotecao-social-do-trabalhador-autonomo-no-modelo-liquido-do-plc

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