Artigo

Prescrição e Decadência em tempos de COVID-19: Comentários à Lei nº 14.010/2020

22.junho.2020

Artigo de Andréa Bueno Magnani, sócia de Mauro Menezes & Advogados

No dia 12 de junho foi publicada a Lei nº 14.010, de 2020, que trata da regulamentação das relações privadas durante o período de pandemia da COVID-19, declarada pela Organização Mundial de Saúde no dia 11 de março do corrente ano. O Regime Jurídico Emergencial e Transitório (RJET) instituído pela referida regra decorre, em especial, dos reflexos da pandemia nas relações jurídicas, sobretudo aqueles de natureza econômica e financeira. 

Em seu texto original, contava o projeto de lei com 19 artigos, divididos em: a) Disposições gerais (artigos 1º e 2º); b) Prescrição e Decadência (artigo 3º); c) Pessoas Jurídicas de Direito Privados (artigos 4º e 5º); d) Resilição, Resolução e Revisão dos Contratos (artigos 6º e 7º); e) Relações de Consumo (artigo 9º); f) Usucapião (artigo 10); g) Condomínios Edilícios (artigos 11 a 13); h) Regime Concorrencial (artigo 14); i) Direito de família e sucessões (artigos 15 e 16); j) Disposições finais (artigos 17 a 19). 

Durante o processo legislativo foram acrescidos os artigos 20 e 21 e, após análise presidencial, foram vetados os artigos 4º, 6º, 7º, 9º, 11, 17, 18, 19. Este estudo centra-se nos artigos 1º a 3º, ficando a análise dos demais dispositivos para ocasião posterior.

Regulamentação Geral do RJET

Em seu artigo 1º, o texto legal esclarece que: “Esta Lei institui normas de caráter transitório e emergencial para a regulação de relações jurídicas de Direito Privado em virtude da pandemia do coronavírus (Covid-19).” A natureza transitória do diploma legal fica evidenciada já em seu primeiro artigo.

Com isso, fica claro que a Lei nº 14.010, de 2020, não tem pretensões de regular permanentemente as relações jurídicas de direito privado; tal papel cabe, primordialmente, ao Código Civil, que não sofreu qualquer alteração pelo novo diploma.

Ainda em seu artigo 1º, o RJET esclarece que o termo inicial para os “eventos derivados da pandemia” é o dia 20 de março, data da publicação do Decreto Legislativo nº 6 que reconheceu o estado de calamidade pública. Não se olvide, contudo, que desde o dia 3 de fevereiro o Ministério da Saúde, por intermédio da Portaria nº 188 (publicada no DOU de 4 de fevereiro), declarou a Emergência em Saúde Pública de importância nacional, conforme Decreto nº 7.616, de 17 de novembro de 2011. Este aspecto que será analisado no próximo tópico.

Em seu artigo 2º, o diploma legal delimita os efeitos de eventual suspensão de normas nele referidas ao estabelecer que a “suspensão da aplicação das normas referidas nesta Lei não implica sua revogação ou alteração.” Este dispositivo tem sua aplicação voltada ao artigo 14, que suspende a eficácia de dispositivos relacionados ao regime concorrencial que, a despeito da relevância, não são objeto desta análise.

Prescrição e Decadência

De acordo com o artigo 189 do Código Civil, a prescrição é a perda da pretensão em virtude da inércia do titular do direito violado; com isso, muito embora permaneça o direito prestacional em si – que pode, inclusive, ser voluntariamente adimplido pelo devedor – não tem mais o credor meios para exigi-lo.

Traz ainda o Código Civil as hipóteses de suspensão ou impedimento do prazo prescricional em seus artigos 197 a 202. Com isso, presente uma das situações descritas, a fluência da prescrição é suspensa ou impedida de ter início (a diferença entre a suspensão e o impedimento é exclusivamente fática, na medida em que se volta exclusivamente à análise se o prazo já teve início ou não).

O aludido rol é taxativo e se pauta no entendimento de que a prescrição não corre contra quem não pode agir (“contra no valentem agere non currit praescriptio”). Com escopo nesse entendimento, o RJET acrescentou mais uma hipótese de suspensão ou impedimento em seu artigo 3º: “os prazos prescricionais consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020.”

Estabeleceu a Lei nº 14.010, de 2020, ainda, a suspensão ou impedimento dos prazos prescricionais entre 12 de junho e 30 de outubro, em virtude da pandemia causada pelo COVID-19. Com isso, reconheceu-se que, em virtude da peculiaridade da situação enfrentada (que levou à quarentena, isolamento social, definição de grupos de risco, capacidade de leitos nas Unidades de Terapia Intensiva nos hospitais públicos), não se pode impor ao credor a inércia caracterizadora da prescrição.

Cabe esclarecer um aspecto importante: o RJET delimita a suspensão ou impedimento do prazo prescricional entre 12 de junho e 30 de outubro, muito embora o parágrafo único de seu artigo 1º tenha fixado o dia 20 de março “como termo inicial dos eventos derivados da pandemia do coronavírus (Covid-19).” E mais: já em 3 de fevereiro foi declarada, pelo Ministério da Saúde, Emergência em Saúde Pública (Portaria nº 188, publicada no DOU de 4 de fevereiro).

Logo, vislumbram-se três marcos temporais diferenciados: a) de 3 de fevereiro a 19 de março; b) de 20 de março a 11 de junho, e; c) aquele previsto no artigo 3º (de 12 de junho a 30 de março). Dito isso, indaga-se: Seria possível defender a suspensão ou impedimento em todos eles ou somente na hipótese expressamente trazida no artigo 3º?

Para Stolze e Carlos Oliveira, a resposta deve ser afirmativa, porém com base em normas e princípios gerais do Direito Civil e não no artigo 3º do RJET. Aqui ganha relevo a lição de Nelson Rosenvald, Cristiano Chaves e Felipe Braga Netto:

(…) fundamento primordial da prescrição e da decadência o intuito de sancionar aquele que, de modo negligente, deixa de passar determinado prazo sem nada fazer. Há, nesse sentido, uma inação, uma omissão, e essa omissão tem consequências jurídicas. É um reflexo do conhecido adágio dormientibus non sucurrit jus (o direito não socorre aqueles que dormem).

Assim, inexistindo inércia imputável ao credor, não se configura hipótese de fluência do prazo prescricional, ainda que a lei não tenha expressamente tratado do período. Desta forma, é possível defender a suspensão ou impedimento do prazo prescricional também no período compreendido entre 3 de fevereiro a 11 de junho, tendo em vista o reconhecimento, pela Administração Pública, da situação de emergência que se fazia – e se faz – presente.

Acresça-se que, presente qualquer das hipóteses de suspensão, impedimento ou interrupção trazidas no Código Civil, não se aplica aquela prevista no artigo 3º do RJET, consoante determinação de seu §1º . No entanto, uma vez cessada a causa de impedimento ou suspensão prevista nos artigos 197 a 202 da legislação civil, terá início aquela referida no RJET.

No que se refere à decadência, a discussão envolve direitos potestativos e não mais prestacionais, de forma que, inexistente uma pretensão, a fluência do prazo leva à extinção do próprio direito.

O Código Civil de 2002 pôs fim à discussão quanto à possibilidade ou não de suspensão ou interrupção dos prazos decadenciais ao estabelecer, em seu artigo 207, que “[s]alvo disposição legal em contrário, não se aplicam à decadência as normas que impedem, suspendem ou interrompem a prescrição.”

Assim, desde que exista previsão legal, é possível que a fluência do prazo decadencial seja suspensa, impedida ou interrompida, conforme prevê o RJET e o próprio Código Civil, que em artigo 208 estabelece a suspensão para os absolutamente incapazes.

Um último ponto relevante para o debate parece ser a eventual continuidade da calamidade para além de outubro. Parece que, se este cenário se concretizar, a suspensão dos prazos prescricionais e decadenciais prevista no RJET deverá, de igual forma, ser prorrogada ante à manutenção do contexto fático que lhe deu origem.

Conclusão

Em 12 de junho corrente, foi publicada a Lei nº 14.010, de 2020, que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET). A novel norma, em seu artigo 3º, tratou da suspensão dos prazos prescricionais e decadenciais.

Uma das questões importantes quanto ao tema refere-se ao termo inicial e final para mencionada suspensão. Muito embora o artigo 3º faça menção ao dia 12 de março como início da suspensão e 30 de outubro com o final, é certo que, mesmo em período anterior à aludida data, é possível discutir a não fluência do prazo prescricional ou decadencial, sobretudo em virtude de seu artigo 1º, que fixa seus efeitos a partir de 20 de março. 

Ademais, desde 3 de fevereiro, o Ministério da Saúde já havia declarado Emergência em Saúde Pública (Portaria nº 188), o que autoriza o argumento de que, desde então, inexistiria inércia do titular do direito e, consequentemente, não se poderia apontar a continuidade da fluência do prazo prescricional ou decadencial.

A incerteza trazida pela pandemia não pode ser ignorada; ao contrário, deve ser reconhecida também para proteção dos interesses privados. A necessidade de isolamento social como forma de combate à pandemia deve ser vista – e aceita – como impedimento do exercício de direito por seu titular, de forma que a suspensão dos prazos decadenciais e prescricionais revela-se indispensável como medida de segurança jurídica e isonomia.

Bibliografia 

BRASIL. Lei nº 14.010, de 10 de junho de 2020. Dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período de pandemia do coronavírus (Covid-19). Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L14010.htm. Acesso em 13 de jun. 2020.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Acesso em 13 de jun. 2020.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Braga. Manual de Direito CivilVolume único. 5ª ed. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 441.

GAGLIANO, Pablo Stolze; OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Comentários à Lei da Pandemia (Lei 14.010/2020). Disponível em https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/859582362/comentarios-a-lei-da-pandemia-lei-14010-2020. Acesso em 15 de junho de 2020.

_____________________; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Manual de Direito Civil. Volume único. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 234.

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